Gosto daquela que mandou o Chico: quando compôs Gota D’Água, peça escrita em parceria com Paulo Pontes, o artista apostava numa ideia atrevida, a de transpor para um típico subúrbio carioca a trama de Medéia, clássica tragédia grega de Eurípides. Esta trama, já adaptada para o cinema por Lars Von Trier (1988) e Pier Paolo Pasolini (1969), retrata o destino inglório de Medéia ao ser abandonada por seu marido Jasão e que depois vinga-se do cara matando os dois filhos do casal. Aos que duvidavam dessa transposição da obra para a realidade carioca, Chico Buarque costumava responder:
– E por que não? Acontecem por dia, no Rio, umas cinco tragédias gregas!
Proibido Proibir (de Jorge Durán), que eu considero um dos grandes filmes brasileiros do século 21, traz à luz uma destas tragédias cariocas tão cotidianas, tão triviais e às vezes tão ausentes dos grandes jornais justamente pois tão recorrentes que se tornaram. É verdade que fomos soterrados, nos últimos anos, por histórias deste Rio que não é o do cartão-postal, do Cristo Redentor, do bondinho do Pão de Açúcar: a faceta trash do Rio é a ferida exposta nos dois Tropa de Elite, em Cidade de Deus e Cidade dos Homens, e também no doc e no filme sobre o Ônibus 174, no Notícias de uma Guerra Particular, no Complexo Universo Paralelo, no Favela Rising… Mas Proibido Proibir prova que ainda há o que dizer – e muito! – sobre as vidas que convivem e se entrechocam nesta grande metrópole latino-americana onde se desenrolam algumas tragédias gregas todo “santo” dia.
A parte comédia-romântica do filme é adorável por si só – e não só dá-de-10 em qualquer daqueles filmecos roliudianos água-com-açúcar e inofensivos com a Meg Ryan ou a Sandra Bullock, como também contêm um ménage à trois tão bem amarrado, com diálogos tão espertos e situações tão bem construídas, que rivaliza bonito com qualquer pérola do cinema francês, do Truffaut ou do Eric Rohmer.
Não é aí neste ménage entre Paulo, León e Letícia que se esconde o elemento trágico do filme de Durán. Proibido Proibir não emula Otelo e não contêm perversidades de Iago ou pescocinhos torcidos de Desdêmona. Pelo contrário: é uma celebração da amizade. Paulo (Caio Blat) e León (Alexandre Rodrigues, que encarnou o Buscapé no clássico de Fernando Meirelles) não deixam de ser “irmãos do peito” só porque um é Flamengo e o outro Botafogo, só porque um é médico e o outro sociólogo, só porque um é branquelo e o outro é negão. O problema é: poderá esta amizade sobreviver ao amor pela mesma mulher?
O diretor e roteirista Dúran, chileno radicado no Brasil, comanda o leme deste navio com o pulso firme de um marinheiro experiente nestas águas turbulentas da violência urbana e da juventude pega no centro do turbilhão. Durán é o roteirista de obras clássicas do cinema latino-americano como Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), Pixote, a lei do mais fraco (1981), ambos de Hector Babenco, e Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles. Com um currículo desses, não surpreende que tenha realizado um filme tão bom em Proibido Proibir – cujo título, aliás, evoca tanto o Tropicalismo e a clássica canção de Caetano quanto o Maio de 68 francês e os slogans pixados nos muros de Paris e que conclamavam a juventude a ser realista e exigir o impossível (dentre muitos outros motes).
Destaca Hessel no Omelete: “O triângulo amoroso é o fio condutor de uma história com fundo sociopolítico. Convém não confundir discurso com retórica. Falando em língua de fila de cinema: Proibido Proibir não é aquele tipo de filme esquerdista chato que parece estar monologando numa passeata. O drama humano se impõe, com humor frequentemente, com poesia, em um retrato naturalista do fim da adolescência que deve casar em cheio com as preocupações e os anseios do público-alvo, os jovens. Há uma discussão tipicamente universitária no fim do primeiro terço de filme, quando Letícia diz que toda arte é política, ainda que às vezes, por se assumir política, se torne panfletária. (…) O chileno Durán, radicado no Brasil desde 1973, conhece bem esses limites. Proibido Proibir é o seu primeiro longa como diretor em duas décadas – e o esforço maior que ele faz é de manter o discurso o mais afastado possível do panfletarismo.”
Apesar de não conter cenas de passeatas ou grandes manifestações de rua, Proibido Proibir está carregado de política. Os três amigos discutem de forma desabrida e sem meias-palavras sobre as problemáticas mais urgentes de seu dia-a-dia – e divergem sobre o quanto as soluções seriam ou não necessariamente políticas. Apesar de seu título, Proibido Proibir versa pouco sobre autoritarismo e ditadura, ao menos numa olhadela de superfície; o filme é muito mais uma reflexão sobre liberdade e libertação, especialmente por dedicar-se inteiramente a acompanhar, cheio de empatia, estes três jovens tão energicamente libertários.
León, Paulo e Letícia, por isso, me parecem ser uma espécie de equivalente, no cinema brasileiro, de outros dois trios que marcaram o cinema mundial nos últimos anos: aquele de Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, e aquele que viaja de ácido na Kombi psicodélica em Aconteceu em Woodstock, de Ang Lee.
O que realmente arrasta para os pântanos do trágico um enredo que parecia tão propício a um tratamento Sessão da Tarde ou Malhação é o retrato explícito da realidade social dos subúrbios cariocas. Os ingredientes que conduzem à catástrofe são conhecidos: descaso do poder público com educação, moradia e saúde; brutalidade policial mesclada com abuso de poder e racismo; ciclos de ódio e de vendeta que engolfam todos numa espécie de guerra civil não declarada.
Os três amigos, quando tentam salvar o menino Cacau de ser assassinado pelos PMs, enredam-se em situações onde a bala perdida é comuníssima e onde quase ninguém aprendeu o evangelho cantado pelo Rappa: “também morre quem atira”.
Sem dúvida que os detratores podem sustentar que Jorge Durán demoniza a figura da polícia militar, que é a verdadeira vilã da história e aparece na tela, mais uma vez, no papel de carrasca. O mínimo que se pode dizer é que este espírito anti-PM no Brasilestá bem no ar dos tempos, em sintonia com o zeitgeist, em especial pois ainda temos frescas na memória ocorrências como o massacre do Carandiru e da Candelária, o caso Ônibus 174 e as “intervenções” dos caveirões da Tropa de Elite nos morros do Rio.
A desocupação brutal de Pinheirinho, em São José dos Campos, e o modo selvagem com que a PM paulista lidou com o movimento estudantil da USP durante toda a era do reitor Rodas, são outros sinais de uma instituição que têm cometido os abusos mais grotescos e despertado intensas ondas de indignação legítima. Sei que na cabeça de muito brasileiro ainda ressoa o que disse o Capitão Nascimento no encerramento de Tropa de Elite II, em seu pronunciamento no Senado: “a PM do Rio de Janeiro… tem que acabar!” Mas só a do Rio de Janeiro?
É um filme corajoso no modo como confronta os dogmas e os preconceitos. Estes jovens do filme estão longe de seguirem a cartilha Belchior-iana do “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. São uma juventude que se independeu não só da tutela paterno-materna, como também amadureceu na escola da vida de um modo impossível àqueles que quedaram, quietinhos e submissos, obedientes à família, à Deus e à pátria. São jovens que forjam relacionamentos com uma ousadia que não possuem os mais conservadores, os mais apegados a regras ancestrais e costumes sacralizados.
Outra das qualidades do filme é o tratamento dado à cannabis no enredo. O cinema brasileiro andou produzindo alguns excelentes documentários sobre o assunto nos últimos anos – com destaque para Cortina de Fumaça e Quebrando o Tabu – mas em poucas obras ficcionais um enredo foi tão bem-bolado a fim de colocar em xeque alguns preconceitos e abrir alguns horizontes mais amplos.
Pela primeira vez no cinema nacional, que eu me lembre, a questão da cannabis medicinal é posta em questão: o personagem de Caio Blat, estudante de medicina, retratado como um profissional muito competente no atendimento aos doentes, pródigo em empatia e auxílio emocional, oferece clandestinamente à sua paciente alguns béques que a senhora aceita com os olhos brilhando de júbilo.
Ele sabe que, caso a direção do hospital ficasse sabendo, ele estaria enrascado e correria o risco de ser expulso. Mas sabe também, por experiência própria, a magnitude e a variedade dos efeitos terapêuticos da cannabis, conhecidos e empregados pela humanidade, nas mais variadas culturas, há milênios e milênios.
Que o Brasil ainda esteja empacado numa política de drogas que proíbe radicalmente o uso e o cultivo da cannabis, inclusive para fins medicinais, é mais uma prova do nosso atraso e de nossos conservadorismos irracionais. Muitos pacientes que hoje penam com o câncer, a AIDS ou a depressão, por exemplo, poderiam ter uma qualidade de vida imensamente superior caso adotássemos um sistema semelhante àquele da Califórnia, do Canadá, do Uruguai, da Holanda etc. onde a legalização da cannabis medicinal foi efetivada com pleno sucesso, com imensos efeitos positivos não só para os doentes, como para a própria economia local.
Proibido Proibir nos convida a concluir, para usar uma frase de Terence McKenna, que a maconha é uma substância capaz de causar intensas reações psicóticas… naqueles que não fumam maconha. Aqueles que nunca tiveram uma experiência com a erva têm a tendência, em sua cabacice ignorante, a demonizá-la e a inventar cruzadas de perseguição a seus usuários e beneficiários. Ninguém me tira da cabeça que os mais empedernidos e autoritários dos proibicionistas, os mais entusiásticos defensores de soluções policialescas e encarceramentos em massa, são os caretas dogmáticos – aqueles que se recusam a experimentar a erva para tirar suas próprias conclusões sobre seus riscos e benefícios, aderindo cegamente a seus preconceitos.
O personagem de Caio Blat, que aparece fumando um baseado em uma dúzia de cenas, é criticado e rechaçado várias vezes por aqueles a seu redor, inclusive seus amigos, por sua adesão demasiado entusiástica à erva. León, por exemplo, lhe presenteia com um exemplar de A História da Loucura, de Foucault, sugerindo que ele se informe sobre os potenciais riscos de enlouquecimento que há no uso demasiado contínuo da ganja. Ora, mas quem é o maior enlouquecido senão essas políticas públicas, enraizadas em preconceitos, baseadas em preceitos militarescos e autoritários, que tratam usuários como criminoso e confundem jardineiros com traficantes? O que é que enlouquece se não esse sistema que taca o rótulo de traficante sobre aqueles que julga-se com licença para encarcerar ou mesmo matar?
Como diz o Denis Russo Burgierman:
“só mesmo os utópicos fundamentalistas religiosos podem acreditar em livrar o mundo das drogas. (…) Graças à proibição ultrarradical, atualmente as drogas matam mais, machucam mais e causam mais dano social que em qualquer época da história. Hoje nossa sociedade atribuiu aos drogofóbicos o trabalho de proteger a sociedade das drogas. (…) Precisamos tirar os histéricos do poder, se queremos alguma racionalidade no mundo.” (em O Fim da Guerra – leia mais!)
O personagem de Caio Blat (e que interpretação magnífica!) me parece representar uma figura meio outsider, contra-cultural, que abriu demais as portas da consciência para poder engolir ovelhisticamente as mentiras e as ideologias que nos são enfiadas goela abaixo. “Fascinado pelo mistério da morte”, num espírito similar ao de Drauzio Varela em Por um Fio, é um personagem rodeado pelo sofrimento e pelo falecimento que o rodeiam em todos os cantos do hospital. Obviamente, como o doutor Dráuzio, Paulo não crê em Deus, provavelmente pela impossibilidade de conciliar o seu testemunho cotidiano do sofrimento dos inocentes com a idéia de uma divindade justa e misericordiosa. Quando Letícia vem com papinho de crente, ele alfineta a moça: “Você acredita até na novela”.
Proibido Proibir é ousado no retrato de um maconheiro que, rompendo com todos os ópios-do-povo, da religião à novela, abre os olhos para a realidade mais nua-e-crua e estende seus braços em atitude de caridade. Pois a mais grotesca das pretensões dos cristãos é pensar que eles são os “donos” da caridade e têm o “monopólio do coração”, para usar um termo de André Comte-Sponville. A caridade, me parece, independe completamente da fé e não é propriedade privada do Papa ou dos apologistas da Bíblia. Qualquer ateu, agnóstico ou cético é capaz de, movido pela compaixão, comovido pela empatia, despertado para a fraternidade secular, agir em benefício do outro. E isso sem o egoísmo inconfesso que é ter a esperança de uma recompensa celeste ou o temor de uma punição futura.
Ruy Gardnier, em Contracampo, pontuou bem: “imbuídos das melhores intenções, Paulo, Leon e Letícia são confrontados com um mundo em que as diferenças sociais e humanas estão ancoradas em raízes muito mais profundas do que poderiam imaginar. Raízes que, por mais que se tente apreender e estudar para mudar – como a colega de classe de Leon –, têm uma efetividade e uma inacessibilidade enorme e dolorosa. Um ritual de passagem, uma aprendizagem sentida, uma desilusão acachapante: o conhecimento e as boas intenções nem sempre servem para abrir possibilidades de mudança efetiva. Proibido Proibir é a narrativa dessa defasagem entre esperança e frustração presentes na distância entre nossa vontade subjetiva e as condições objetivas de intervenção no tecido social. Nessa lacuna, nasce a graça particular e pungente do filme de Jorge Durán.”
Em Proibido Proibir, acompanhamos emocionados a montanha-russa que conduz uma parcela da juventude brasileira que, desperta, consciente e aguerrida, lança-se nas urgências da política, com menos panfletarismo do que improviso vivo. Mas ninguém vai só, até porque o gigantismo e a monstruosidade do sistema é demais para que qualquer indivíduo solitário sinta-se em condições de erguer sem ajuda o outro-mundo-possível. É a própria amizade que marcha para o epicentro do terremoto, para o centro pulsante da guerra, na certeza de que a União, além de açúcar, faz a força.
“Proibido Proibir atinge em cheio o coração daqueles que se preocupam com os laços que a ficção pode tecer com o mundo em que vivemos”, escreve Gardnier. “Como os personagens ao final, as adversidades e os problemas processuais não impedem que se continue vivo e ativo.” Este é um filme cheio de vida, repleto de graça e de fúria, que exala uma autenticidade rara – assisti-lo é já uma experiência libertária e um passo para abrir mentes que não querem estar confinadas nas jaulas do proibicionismo nem nos cárceres do conservadorismo. Não é um triunfo pequeno para este filmaço de Durán e que é já um patrimônio do cinema latino-americano contemporâneo.
Leia mais: Contracampo – Omelete – Cineclick – Cinecartógrafo
Publicado em: 27/01/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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